Quando iniciamos a jornada FIRE, o foco da aprendizagem e do plano traçado está na fase de acumulação. Em que ativos investir, como distribuir o portefólio, que valor reforçar e como fazer toda essa gestão financeira do dia-a-dia.
Inevitavelmente, mesmo que ainda faltem muitos anos para isso ser uma preocupação, existe também a dúvida de como operacionalizar a utilização e gestão dos rendimentos, assim que se atinge o FIRE e se passa a viver do valor acumulado.
Eu não tenho um plano concreto, porque ainda falta muito tempo e há demasiadas incógnitas:
- Será que vou deixar de trabalhar por completo quando atingir o FIRE?
- A tributação dos rendimentos será a mesma ou diferente?
- Que juros/dividendos serão pagos nessa altura?
Estas são algumas das questões às quais não consigo responder neste momento.
Ainda assim, porque sei que este exercício de análise pode ajudar a tranquilizar quem tem dúvidas nesta fase da jornada, vamos a um exemplo prático. Basicamente, o que aconteceria se hoje, com a informação que tenho, atingisse o FIRE.
NÚMEROS
Seguindo o que tenho previsto no meu plano FIRE, para me reformar confortavelmente hoje, precisaria das seguintes condições:
Distribuição de portefólio (300.000€)
Ativo | % Portefólio | Valor (€) | Taxa de juros/dividendos esperados | Valor Juros/Dividendos esperados |
---|---|---|---|---|
ETFs Obrigações | 10 | 30.000 | 3% | 900 |
ETFs Ações | 20 | 60.000 | 4% | 3.000 |
P2P | 15 | 45.000 | 7% | 3.150 |
Total | 45 | 135.000 | 4,8% | 7.050 |
Ativo | % Portefólio | Valor (€) | Taxa de juros/dividendos esperados | Valor Juros/Dividendos esperados |
---|---|---|---|---|
ETFs Ações | 45 | 135.000 | 0 | 0 |
PPR | 5 | 15.000 | 0 | 0 |
Bitcoin | 5 | 15.000 | 0 | 0 |
Total | 55 | 135.000 | 0 | 0 |
Almofadinha financeira (25.000 €)
Para me proteger de eventuais crises prolongadas na bolsa de valores numa fase inicial, que diminuiriam largamente a minha probabilidade de sucesso, planeio ter 5 anos de despesas facilmente acessíveis (o cálculo e considerações estão explicadas aqui).
Podem estar em certificados de aforro, depósito bancário, ou algum outro local de fácil acessibilidade e zero volatilidade.
Primeiro ano de despesas na conta à ordem (12.000 €)
Além da almofada financeira, cuja função é salvaguardar os meus rendimentos em alturas de crise, quero ter também, na conta bancária, dinheiro suficiente para o primeiro ano de despesas.
A ideia é começar esta nova etapa com calma e sem preocupações, com tempo para adaptação. Um ano é mais que suficiente para aprimorar a estratégia, com toda a certeza.
Valor total: 337.000 €
O valor total necessário é, então, 337.000€.
300.000€ estão investidos, e o restante está na conta à ordem ou num outro lugar de baixo risco.
Utilização do dinheiro
Com esta estratégia e outras considerações super importantes que ainda não foram referidas, no FIRE terei várias fontes de rendimento à minha disposição. Serão utilizadas com prioridades claramente definidas, de modo a optimizar e garantir a preservação, ou até multiplicação do capital que continua investido.
PRIORIDADE 1: Renda extra (3000€/ano?)
Apesar do termo reforma antecipada, a verdade é que poucas pessoas no FIRE deixam o trabalho por completo. Podem fazê-lo, mas escolhem continuar com algum projeto que os entusiasme e que, inevitavelmente, acaba por gerar rendimentos.
No meu caso, tenho: royalties dos livros (mesmo que pare de escrever, os que já tiver publicado poderão continuar a ser vendidos), patrocínios do podcast (se o continuar a fazer), links afiliados do blog (se o mantiver ativo).
De forma extremamente pessimista, para efeitos de cálculo vou considerar que poderei continuar a receber 250€/mês desta forma.
PRIORIDADE 2: Juros e dividendos dos investimentos (7.050€?)
Neste momento, todos os juros e dividendos que recebo são automaticamente reinvestidos nas respetivas plataformas.
No FIRE, será diferente: todos os juros e dividendos serão automaticamente transferidos para a minha conta, para os gastar no dia a dia.
De acordo com as estimativas previamente apresentadas, poderei receber cerca de 7.050€ deste tipo de rendimentos, para cobrir as minhas despesas.
PRIORIDADE 3: Venda de ativos, de modo a manter a distribuição de portefólio pretendida (12.000 – 3000- 7050 = 1950 €)
A última opção, usada apenas para cobrir os valores em falta, é vender ativos, para obter os €€ necessários.
Usando como exemplo os valores anteriormente apresentados:
Preciso de 12.000€ por ano. Recebo 3.000 de rendimentos extra, 7.050€ de juros e etc. Ficam em falta 1950 €, por isso analiso o meu portefólio para perceber o que faz sentido vender (vendo os ativos que estiverem acima das percentagens de distribuição que defini – ex: quero 5% de bitcoin e tenho 7%, por isso vendo bitcoin para voltar a aproximar dos 5% pretendidos).
Os valores não são fixos. Pode haver anos em que ganhe mais dinheiro de renda extra e outros em que nem ganhe nada. Posso receber mais juros ou menos juros. O que importa é seguir sempre a lista de prioridades, sabendo que a venda de ativos entra sempre em último recurso, e apenas para compensar o valor que está em falta.
E se há uma crise?
Se o valor do património diminuir consideravelmente, ativo o plano B de proteção: usar a almofadinha.
Continuo a seguir as prioridades 1 e 2, mas a prioridade 3 altera para:
PRIORIDADE 3 EM CRISE: Utilização do valor necessário da almofadinha financeira (12.000 – 3000- 7050 = 1950 €)
Neste caso, deixo estar os meus ativos quietinhos. Vou buscar o valor em falta à almofada financeira.
Assumindo os números anteriores, tenho de retirar 1.950€ do valor que está guardado em local seguro. Se for necessário mais €€ para perfazer os 12.000€, retiro mais, claro.
Assim que a bolsa recupere e volte novamente para os valores pré-crise, volto novamente à Prioridade 3 normal, com um extra: começo a vender gradualmente os ativos necessários para poder repor o valor inicial da almofadinha financeira. Assim que esteja reposto, estou pronta para ultrapassar a próxima crise.
Ajudou ou complicou?
Este não é, certamente, o plano definitivo. Em 7 anos pode mudar muita coisa. Os retornos esperados, os meus rendimentos extra, o meu perfil de risco, etc.
No entanto, espero que este exemplo prático do que tenho definido atualmente na minha cabeça possa ajudar quem tem dúvidas nesta parte do plano FIRE.
Espero não ter complicado mais! Aguardo feedback. E se houver dúvidas, é só deixar abaixo e eu tento esclarecer 🙌
Olá!
Quando a percentagem de distribuição estiver acima do que queremos, porque não reinvestir a diferença em vez de vender o ativo?
Olá!
Vender para comprar pode não ser assim tão eficiente a nível de impostos. Vamos pagar impostos de mais valias sem usufruir desse rendimento, porque vai ser reinvestido.
No FIRE passamos a viver dos investimentos, por isso vamos ter de retirar dinheiro de algum lado. Fazê-lo do ativo que está positivamente desiquilibrado deve ser suficiente para acertar as coisas, ou pelo menos aproximar da distribuição pretendida.
Mas é uma questão de avaliar na altura o que faz mais sentido 🙂
Obrigado pelo artigo e pelas dicas mas tenho uma questão, e os impostos a pagar? onde é que entram nestas contas?
Ao rendimento anual não é necessário reduzir o IRS diminuindo assim o rendimento disponível.
Olá!
O IRS acaba por ser outra despesa. Se precisas de pagar esse imposto, é fazer como outra despesa qualquer: vender ETFs para conseguir esse valor.
Tenho um artigo exclusivamente dedicado a impostos no FIRE, é este. Vê se ajuda 🙂
Olá Dama de Ouros,
Parabéns pelo excelente post, gosto muito da transparência deste blog e por explicares tão bem de onde vêem todos os números envolvidos. Já tenho o teu livro na minha lista de pedidos para o próximo Natal :).
A minha pergunta é a seguinte: nos budget pos-fire, não consideras aquilo que vais receber da Segurança Social, quando chegar a altura da “reforma do estado” (neste momento, por volta dos 67 anos)? E se sim, já investigaste a quanto terias direito se deixares o teu emprego full time nos próximos anos? Muito obrigada!
Olá!
Muito obrigada! 🙂
Não considero. Vejo como aquele chocolate/rebuçado que alguns estabelecimentos colocam com o café. Não estou à espera de o receber, mas se vier é uma surpresa agradável eheh
A reforma da SS será isso mesmo: um complemento. Não faço as minhas contas em função disso, porque até lá pode haver cortes e não quero chegar a essa idade e perceber que contei com uma coisa e afinal vou ter menos.
Vou ter a minha total liberdade financeira, e esse extra será para o que me apetecer na altura. Gastar mais, oferecer, ou outro qualquer.
Há outra questão: os valores dependem da carreira contributiva. Eu comecei a descontar em 2016, por isso, se me reformar em 2030, terei 14 anos de descontos. Se trabalhar mais um ano, já passa a 15 anos e os valores são diferentes. Abaixo citação de um artigo:
As pensões mínimas no regime geral de Segurança Social passam a ser de:
291,48 euros (mais 13,43 euros do que em 2022), para carreiras contributivas inferiores a 15 anos;
305,77 euros (mais 14,09 euros), para carreiras contributivas entre 15 e 20 anos;
337,41 euros (mais 15,55 euros) para carreiras contributivas entre os 21 e os 30 anos;
421,75 euros (mais 19,43 euros), para carreiras contributivas entre os 31 e mais anos.
Depende muito destes timings e também do que serão os valores reais na altura. Não acho que possa confiar muito nisto, quando faltam mais de 30 anos para çá chegar.
Espero ter ajudado!
(artigo completo)
Obrigado pelos posts e explicações. Estou a seguir o podcast também. Continua o bom trabalho.
Tenho no entanto algumas questões. O teu plano prevê custos que não tendem a se diferenciar, exemplo ter filhos e custos associados à natureza da dependência. Qual a sugestão? Incluir como outra despesa qualquer com Educação, alimentação. Outros.
Obrigado
Olá!
Acho um bocado perda de tempo andar a imaginar ao detalhe como vai ser a vida no futuro. É preciso pensar bem, e provavelmente vamos errar na mesma.
Prefiro ter um número redondo, porque nesta fase tanto faz o número FIRE de 300.000€ ou de 1 milhão, porque o caminho e passos a seguir são os mesmos.
Quando estiver mais perto de o atingir, posso recalcular os valores. Quanto mais perto estiver do pós-FIRE, mais fácil será prevê-los.
Portanto, a minha sugestão é: não complicar. Fazer estas contas iniciais para a realidade *atual* e adaptar à medida que as circunstâncias vão mudando.
Espero ter ajudado!
Olá. Obrigado por toda esta informação que ajuda sempre ter em conta outros planos e formas de pensar.
Tenho uma dúvida, o ETF EUNA sendo de obrigações acumulativo não deveria entrar na tabela dos ativos não distributivos ? Ou na altura do artigo ainda não entrava nos planos ?
Obrigado!
Olá!
Sim, o que é acumulativo entra na tabela dos acumulativos. Na verdade o que importa é mais a distribuição do grosso do portefólio. O valor pormenorizado de cada ativo que estará lá dentro, e quais serão exatamente esses ETF, é algo que irei decidir mais perto da data 🙂
Agradeço muito por este artigo, Dama de Ouros. Realmente, é reconfortante traçar um plano temporário para o pós-FIRE.
Como sempre, muito obrigada pela partilha, a tua ajuda é imprescindível, tens em conta os mais pequenos pormenores e, na minha opinião, isso é uma enorme mais-valia.
Desejo-te o melhor!😘
É muito importante mesmo! Acho que temos de estar 100% seguros das nossas escolhas e da segurança do nosso plano, caso contrário passamos de uma vida stressante por causa do trabalho para uma vida stressante por causa da gestão do dinheiro.
Paz de espírito é o mais importante! 🙏
Obrigada, beijinhos